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Aline Souza Martins

Édipo localizável

Aline Souza Martins

 

O complexo de Édipo talvez seja a marca mais forte deixada pela psicanálise na cultura. Allen e Dali não deixarão que o mundo esqueça que o inconsciente do bebê é marcado por esse insistente de desejo de ter a mãe e matar o pai. Desejo que nos atormenta e nos forma. Mas por que Freud escolhe chamar esse conceito pelo nome de um mito, mais especificamente o mito do Édipo?


A primeira vez que Freud mencionou a questão de Édipo foi em 15 de outubro de 1897, em uma carta a Fliess. Na carta, descreve um sonho: Freud ainda criança chora pela falta da mãe, seu irmão Phillip mantém um guarda-louças aberto, e ao verificar que a mãe não está dentro do armário Freud chora ainda mais forte, sendo que, nesse momento, ela entra pela porta. Freud relaciona esse sonho à memória encoberta infantil de uma babá que desapareceu de sua convivência, pois foi presa por roubar objetos de sua casa. Ele associa a figura da mãe com a da babá, condensadas na mesma imagem maternal daquela que cuida, e depois desloca o conteúdo traumático da perda da babá, enviada para a prisão, com a busca da mãe dentro do armário de louças.


Nenhuma interpretação de Freud vai no sentido de problematizar a babá como figura substituta da mãe, tampouco a condensação da prisão com um objeto tão doméstico como um guarda-louças, mas esses elementos estão presentes no sonho, e por mais que a teorização mantenha a mãe e desapareça com a babá, ela permanece nos casos clínicos e nas cartas como elemento importante nessa teoria.  Partindo desse ponto, propomos pensar a localização do édipo a partir de três marcas, o contexto de origem, a raça/classe e o gênero.

 

De onde é o Édipo?

O mito do Édipo Rei foi escrito por Sófocles (441 a.C./2005) na Grécia por volta de 427 a.C. Não se pode negar que ele “tem berço”, assim como uma criança ele foi concebido em um local, um tempo e em uma cultura específicos, que não por acaso é a Grécia, sede de grande parte da influência política do ocidente. A imagem oferecida por esse mito irá se encaixar perfeitamente para descrever o processo inconsciente percebido por Freud em si e nos vianenses de todas as idades próximos a ele.


Quando a psicanálise foi levada para o Japão Kosawa propôs a Freud que se trocasse o mito do Édipo pelo mito hindu do Príncipe Ajase, no contexto oriental a estrutura política e a cultura com suas leis sociais e familiares identificou que a culpa relacionada à mãe e a vergonha na cultura japonesa seriam diferentes da culpa como medo de castigo do ocidente. O sentimento mais importante para os japoneses é Amae, a emoção relacionada à dependência dos sujeitos dos outros, especialmente da mãe. Assim, quando esse é o sentimento principal, a castração não leva o indivíduo à autonomia e à liberdade, mas enfatiza o vínculo de dependência através do sentimento de gratidão. As diferenças sobre o relacionamento com a mãe e a relação de poder dentro da cultura japonesa fizeram com que Kosawa adaptasse a teoria de Freud para ser mais adequada à sua cultura, e dizem que Freud consentiu.[1]


Se optamos por entender o complexo de Édipo como uma etapa do desenvolvimento psíquico – tanto de constituição subjetiva como de assujeitamento ao sistema de poder localizado no tempo e espaço – optamos por questionar ideais universalizantes. Essa postura está implicada na necessidade de analisar a relação de poder que está sendo imposta no processo de aculturamento do sujeito para daí depreender a estrutura descrita como edípica para cada cultura. Essa relação faz parte da análise assim como a análise da sexualidade, pois a política e a subjetividade são indissociáveis. É necessário, portanto entender como essa “estrutura localizada” se estabilizou e como aquele sujeito foi submetido a ela ao longo da história que o cerca, tanto antes do seu nascimento quanto depois.

 

Sobre a denegação da babá

Anne Macclintock (2010) evidencia a classe, a raça e o gênero por trás do texto freudiano. A primeira evidencia é que a trabalhadora paga seja excluída do reconhecimento no seu papel de cuidado, e a segunda, apaga a cor dessas mulheres, retirando do texto qualquer vestígio do que não seja o dito “universal branco”, e relega o lugar da lei e da identificação sempre ao homem, evidenciando o monismo sexual da teoria freudina ( Safatle, 2020) e relegando a mulher ou “outro sexo”, o não fálico, a castrada. Tantos pontos geram uma cegueira parcial, que essa autora nomeia como uma denegação do lugar da mãe preta no cuidado primário e na teoria do complexo de Édipo.


Outro exemplo é o Édipo Brasileiro, descrito pela antropóloga argentina que vive no Brasil, Segato (2006). Essa autora estudou gênero nos povos indígenas e nas comunidades latino-americanas. Ela propôs uma releitura do complexo de Édipo Brasileiro incluindo as babás e as amas de leite, que têm papel essencial na maternagem e no cuidado diário da maior parte das crianças brasileiras brancas de classe média. Assim, apesar de estarmos cientes de que as relações nas famílias afrodescendentes, indígenas ou de classe menos favorecidas não compartilharem as mesmas condições, julgamos esse deslocamento importante por apontar um aspecto da maternagem que raramente é levado em consideração: o compartilhamento do cuidado entre as mães biológicas e de criação, incluindo as trabalhadoras, babas.

 

Sobre a domesticação da cuidadora

O sujeito entra na cultura por meio do complexo de Édipo, pois ele marca o momento de internalização da lei por meio da hierarquia de poder que ordena o funcionamento dos corpos em uma dada cultura, no caso do ocidente o papel máximo é do pai. Segundo Stephen Frosh (1987, 2019a), esse não é apenas um modelo individual para o desenvolvimento psíquico, é também o encontro entre sujeito e sociedade: desejo contra autoridade que é internalizada.


Segundo Jéssica Benjamin (1986), o complexo de Édipo não seria somente um momento no qual a criança se depara com a percepção física da falta do falo ou da diferença sexual biológica, mas também a ocasião em que ocorre a percepção simbólica do lugar da mulher na sociedade como aquela a quem falta algo. Desse modo, mesmo não sabendo descrever a diferença sexual, a criança responderia a esse imaginário social. A idealização da maternidade seria apenas uma segunda página do velho controle da sexualidade feminina, dessexualizando a mãe e dando-lhe uma forma passiva, carinhosa e sem prazer, que serve melhor ao domínio masculino, pois assusta menos.


Essa teoria coloca em cena um debate a respeito da relação entre diferença sexual e  dominação, visto que no modelo edípico o pai assume a posição da diferença, da lei, do simbólico em uma posição de privilégio em relação à mãe. Ela, por sua vez, tem seu poder identificado com a natureza e com a gratificação primitiva que deve ser renunciada. Dessa forma, o pai representa o crescimento e a racionalidade, a construção da triangulação que coloca a luta por reconhecimento como uma rivalidade entre pai e filho reduz a mulher a um papel contestável, nunca como um outro cuja subjetividade é digna de confrontação. Nesse caso, o menino precisa idealizar o pai para formar seu senso de agência e desejo, sendo ele a imagem do ideal que a criança gostaria de ser. Assim,


 Esse amor precoce é um “amor ideal”: a criança idealiza o pai porque ele é o espelho mágico que reflete como quer ser — o ideal em que o filho quer se reconhecer. Sob certas condições, essa idealização pode se tornar a base do amor ideal do adulto, a submissão a um outro poderoso que aparentemente personifica a agência e o desejo que falta em si mesmo [2] (Benjamin, 1988, p. 100, tradução nossa).

 

Tanto Freud quanto Breuer relatam em Estudos sobre a histeria (1893-1895/2016) ter conhecimento da grande capacidade intelectual e criativa de suas pacientes histéricas que foram levadas a desempenhar atividades aquém das suas capacidades e de seus desejos,  ou por cuidarem de seus familiares doentes, ou se restringirem a atividades domésticas desvalorizadas e expropriadas no trabalho reprodutivo (Federici, 2017), ou ainda, se resignarem a esconder a sua dor em sintomas patológicos (Freud, 1893/2016). Os mesmos pais adorados que incentivavam as filhas ao estudo se voltavam contra elas, quando elas tentavam se emancipar e se recusavam a ocupar os lugares domésticos.


A luta entre pai e filhos os prejudica na hora de reconhecerem alguém fora do eu, visto que o pai é constantemente tomado internamente pelo filho na tentativa de se identificar. Essa dinâmica de dominação os atrapalharia no processo de reconhecer o outro primeiro, a mãe, gerando a misoginia, que permeia não só na produção teórica como também toda a sociedade.


Entende-se, assim, que Benjamin (1988) revê os conceitos contemporâneos de independência e autonomia que gerariam uma tentativa de dominação, sendo ela entendida como estratégia para lidar com o horror à dependência. Essa crítica cria um novo paradoxo que propõe a sustentação do reconhecimento entre sujeitos iguais, com forças contraditórias entre desejo de reconhecimento e independência[3].


Concluindo

Isso nos leva a não dispensar o complexo de Édipo, mas a localizá-lo como produto da história, ou seja, fazer uma psicanálise que se aceite tão amarrada à história quanto ao psiquismo, uma psicanálise inserida, que se sabe produtora de política assim como é produzida por ela.


Concluindo, Freud julga que a história do Édipo permanece tão conhecida ao longo dos anos pois faz com que os expectadores se identifiquem com o protagonista por seu processo psíquico infantil, realizando sua culpa inconsciente através dos personagens, encenando a rivalidade em relação a um dos pais e desejo amoroso em relação ao outro. Talvez seja possível pensar que sim, os sujeitos ocidentais identificados com o universal ideal se veem no édipo pois sofrem o processo de internalização de uma certa estrutura de poder localizada no tempo e no espaço, processo no qual a criança é ao mesmo tempo sujeito e sujeitado (Butler, 1988) aos discursos que perpassam a relação entre si o mundo. Talvez a história de Édipo faça ressoar em Freud uma marca da sua subjetividade e a de todos os que ele conhece, (como fica claro na leitura das atas da sociedade das quartas-feiras),  pois diz do encontro entre o sujeito e poder (Mitchell, 1974/1990) na sociedade ocidental, na qual o universal tem origem, raça e cor, e principalmente, falo. Localizar o édipo, portanto, não é abrir mão dele, pois somos todos sujeitados a isso, mas sim, a partir das marcas que ele deixou em nós transformar o social para, quem sabe, chegarmos ao ponto de podermos questionar o pai como sujeitos, e exigir novas formas de subjetivação.



[1] É bastante interessante como nesse mito o desfecho do complexo é feliz e não triste, contrariando o Édipo ocidental. Esse exemplo também leva em consideração uma série de diferentes consequências coloniais, de raça e de gênero que não trabalharemos aqui.

[2] No original: “Psychoanalysis has recognized the importance of the boy’s early love for the father in forming his sense of agency and desire; but it has not assigned a parallel importance to the girl’s. This early love of the father is an “ideal love”: the child idealizes the father because the father is the magical mirror that reflects the self as it wants to be – the ideal in which the child wants to recognize himself. Under certain conditions, this idealization can become the basis for adult ideal love, the submission to a powerful other who seemingly embodies the agency and desire one lacks in oneself” (Benjamin, 1988, p. 100).

[3] Essa lógica, da qual falaremos mais no capítulo 5, propõe o mútuo reconhecimento não como algo estanque e que nunca irá faltar, mas como uma ética de relação com o outro, um horizonte a ser perseguido.

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