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Alessandra Affortunati Martins

Paul B. Preciado revela o lado b do Dr. Freud

Alessandra Affortunati Martins



Pode-se imaginar a espessa barba de Freud pulverizada de pó branco? Diversos pontos claros sobre o tapete escuro que moldava sua face? Seus olhos vidrados? Suas palavras encadeadas velozmente ou quase atropeladas por uma jactância artificial? Suas narinas fungando em desespero uma última carreira que o faria recobrar o ânimo, perdido em algum recôncavo melancólico de seu labiríntico incosciente? 


Após breves pesquisas sobre o lado b de Freud, Paul B. Preciado certamente imaginou cenas como essas. Embora as imagens não correspondam exatamente às da cocaína pura injetável, que circulava na época de Freud, ler o perfil do psicanalista traçado por Preciado em Texto Junkie, é como transpô-lo aos nossos dias.

Quando ainda estudava obras do Dr. Sigmund Freud na graduação, escutei de um professor: “Existe Freud para todos os gostos”. Na ocasião, jovens estudantes debatiam quem estaria mais “alinhado” à letra freudiana, se D. W. Winnicott ou M. Klein. Com aquela frase, o professor sugeria que o campo aberto por Freud já não era mais “de” Freud; a psicanálise tornara-se uma esfera da linguagem que compõe um dos mais importantes contornos formais da cultura ocidental. Ninguém mais segue fielmente a letra do (ex-) mestre. Ainda que partam do legado freudiano, os contemporâneos distorcem e multiplicam seus traços. 

O Freud de Testo Junkie é um Freud vulnerável. Seu caráter suscetível, todavia, o lança a ímpetos desbravadores de coragem. Cidadão da Europa dos séculos XIX e XX, ele estava submerso em um antro de psicotrópicos. Ali, substâncias como ópio, laudano, haxixe, maconha, heroína, cocaína e mescalina, entre outras, eram traficadas, consumidas e comercializadas pelos canais coloniais. 


Freud tinha um ano de idade quando, em 1857, o químico Friedrich Gardeke deparou-se com a cocaína nas suas explorações em laboratório. Aos 25, já leitor contumaz, Freud conhece a substância por meio de um artigo escrito em 1883 pelo físico alemão Theodor de Aschenbrandt. Naquela época, doses de cocaína estavam sendo fabricadas pelo laboratório alemão Merck para combater a exaustão sofrida por soldados bávaros. 


Como expõe Preciado, políticas imperialistas são políticas de guerra e “não há guerra sem suplementos bioquímicos da subjetividade que levem o corpo e a consciência para além de si mesmos”. Também não há pós-guerra sem drogas do esquecimento. Os suplementos bioquímicos que induzem à amnésia visam à continuidade da ideologia moderna do progresso. Logo que o lê o artigo de Aschenbradt, Freud escreve para sua noiva: “Martha, eu tenho um projeto”. Paul B. Preciado deduz dos passos do criador da psicanálise:


Com certeza, ele pensou ter encontrado o El Dorado, em ficar rico e em descobrir utilizações médicas inéditas (aumento da pressão arterial, combate à fadiga, indução da excitação sexual e realização de anestesia local), mas também esperava produzir outra forma de conhecimento. Para o jovem Freud, a cocaína é um projeto epistemológico tanto quanto econômico. 


Ao defender o uso de políticas de experimentação corporal e semiótico-tecnológicas, que denomina “princípio da autocobaia”, Preciado evoca Freud e Walter Benjamin. Para ele, ambos teriam estabelecido “críticas da subjetividade moderna europeia, inventando novas técnicas do eu e de registros de práticas de intoxicação voluntária”. 


Freud, naquela época, vivia em um albergue estudantil. Noivo de Martha Bernays havia dois anos, não tinha condições financeiras de alugar um apartamento onde pudessem morar juntos após o casamento. Na luta contra a pobreza, a cocaína apresenta-se como um ramo científico promissor. Mas, de bolso vazio, não sabe como pagar por seu ansiado grama de coca. Sem emprego, vê-se forçado a pedir dinheiro emprestado.


Em 30 de abril de 1884, data em que se celebra a lascívia de Walpurgisnacht, Freud finalmente adquire sua primeira dose de cocaína. Consome-a vorazmente. A substância alastra-se pela sua corrente sanguínea e o anima. Até os 40 anos, Freud “muitas vezes duvidava de si” (David Cohen) e a  cocaína lhe devolve confiança social e disposição. Em companhia de sua noiva, Martha Bernays, passa a utilizar boas doses de pó para testar sua propriedades afrodisíacas, combinando seu estado eufórico a descobertas sexuais. Sexo, drogas e pesquisa intelectual. Uma exploração do pensamento e do corpo através de si. 


Não se trata aqui de fazer defesa ou denúncia do passado de Freud com a cocaína. Trata-se antes de observar uma linha de pensamento em que a carne-máquina está implicada no trabalho intelectual. Aliás, com esse colorido, Freud parece inserir-se no “projeto transfeminista” de Paul B. Preciado, cuja definição é não ser “edificado apenas por palavras”. Os corpos tornam-se “plataformas biopolíticas” e submetem-se a experimentos “farmacopornopolíticos de hormônios sexuais sintéticos”. São corpos-artifícios que delimitarão novas estruturas de inteligibilidade cultural. Sabe-se, porém, que não é por essa via que o psicanalista insistirá. Preciado avalia que Freud – assim como Walter Benjamin – acaba engolido pelo discurso da modernidade disciplinadora. Rende-se aos arranjos patologizantes da intoxicação e adere à versão da industrialização química que domestica os experimentos de si. Seja como for, houve um tempo no qual Freud aventurou-se em testes na sua própria carne, intoxicando-a de substâncias artificiais.  Depois do primeiro grama, comprou outro e mais outros... Usando seu corpo como cobaia, Freud registra: 


Alguns minutos depois de tomar a cocaína, experimenta-se uma súbita euforia e um sentimento de leveza. Sente-se uma espécie de pilosidade nos lábios e no palato, acompanhada da sensação de calor nestas áreas; se depois tomamos água fria, sentimos calor nos lábios e frio na garganta. [...] Às vezes o principal efeito era um frescor bastante agradável na boca e na garganta. [...] a excitação e a euforia não diferem em nada da euforia normal de uma pessoa sã. O sentimento de excitação que acompanha o estímulo do álcool está totalmente ausente; tampouco há a necessidade característica de atividade imediata produzida pelo álcool.


Aventuras como as de Freud não eram incomuns. Usar -se como cobaia era usual entre médicos, artistas e intelectuais do século XIX, que experimentavam em si mesmos os efeitos de várias drogas. Embriagados pelas diferentes substâncias, debruçavam-se sobre os próprios pensamentos, sentimentos e sensações. Já em 1799, o grande químico Humphry Davy inalou óxido nitroso para investigar seus efeitos. Na Paris de 1844, havia o Clube do Haxixe; dentre seus membros, Victor Hugo, Honoré de Balzac, Eugène Delacroix e Charles Baudelaire. William James, que também integra a lista, inala óxido nitroso e registra detalhes sobre sua experiência com o gás. O consumo introspectivo de drogas inclui outros nomes, como Havelock Ellis e Aldous Huxley. (Cf. David Cohen)


Das pesquisas de Freud, porém, pouco sobrou. Restam apenas notas das diversas páginas escritas a respeito da cocaína, nas quais ateou fogo após as descobertas dos efeitos nefastos da substância: 


Tenho a impressão de que o humor que a cocaína provoca com tais doses não resulta tanto de uma excitação direta, mas do desaparecimento de elementos deprimentes do estado da alma em geral. Convém admitir também que a euforia em uma pessoa com boa saúde não é outra coisa que o estado normal de um córtex cerebral bem alimentado que ‘não sabe nada’ sobre os órgãos do próprio corpo.


Recuperar o lado b de Freud significa conectá-lo não só aos estudos de Preciado, mas também aos de pensadoras como Donna Haraway e Catherine Malabou. Importante reconhecer que, hoje, a psicanálise tem levado boas bordoadas. Abalos a acompanham desde seus primórdios, mas o terreno psicanalítico sempre teve fôlego para rever-se e recompor-se, seguindo rastros e pistas daquilo a que se propunha escutar. Ousava dar passos no escuro; encarar sua surdez e aguçar seus ouvidos. 


Todavia, sempre é possível que a escuta psicanalítica também se encerre em pressupostos fixos, abrindo mão da porosidade necessária àquilo que ainda não sabe. Sempre é possível moldar o material em chaves prontas de leitura. Sempre é possível, enfim, que prevaleça a escuta preguiçosa, que desobriga o analista a se rever por inteiro ao lançar-se no abismo daquilo que é perturbador. Quando defendeu-se contra sua própria vulnerabilidade, Freud entregou-se a caminhos investigativos mais fáceis. Em alguns momentos, rendeu-se a cortar o que já não cabia em seu conceitos. Ao seguir por essa direção, Freud frequentemente reativava a insistente fórmula edípica. Era ela quem sustentava teoricamente a normatividade em torno do projeto familial-burguês. Entretanto, por mais que se persista, há chaves que não abrem certas fechaduras. E chega o dia em que elas precisam ser jogadas pela janela. 


Na década de 70, Gilles Deleuze e Félix Guattari martelaram sobre as balizas edípicas em O Anti-édipo. Mesmo trôpegas, porém, elas sobreviveram. Hoje, marteladas duras ainda têm sido dadas. Na cena de um filme pornô de uma adolescente filmada por um Braço Peludo, Preciado reescreve o que era conflito edípico, usando outros termos:  


O nome Braço Peludo nasce desta imagem. Braço Peludo tem a mesma relação com a condição farmacopornografica contemporânea que Édipo tem com a imaginação da consciência moderna de Freud no início do século XX. Hoje, para poder iniciar uma terapia política do Ocidente, seria necessário falar do complexo de Braço Peludo. Já não se trata de um desejo proibido pelo pai ou pela mãe. Nenhuma garota cis que vive nos bairros pobres de Paris deseja matar a mãe para trepar com o pai. Com a exclusão racial e social suportada desde o início, qualquer desejo, acima e além das exigências do mercado, de ir para a cama com o velho é altamente improvável. O Complexo de Édipo deixou de ter vigência política. Édipo foi derrubado pelo Braço Peludo. O pai e a mãe já estão mortos. Somos os filhos de Hollywood, do pornô, da pílula, dos enlatados televisivos, da internet e do cibercapitalismo. A única coisa que a garota cis árabe deseja é transformar seu corpo em imagem consumível pelo maior número de olhares. Sair da merda. Ter acesso à grana. Tocar a glória numericamente nem que seja por um segundo. Ela deseja transformar-se em mercadoria digital para ser eterna.


Nessa nova versão, o capitalismo depredatório e neoliberal atravessa Imaginário, Simbólico e Real pela insígnia do Deus-dinheiro. Não há afeto erótico familiar que concorra com essa estrutura político-ecônomica na constitição da subjetividade com a farmapornografia. Por isso, o holofote analítico e crítico deve dirigir-se hoje aos mecanismos desse sistema social.


Muitas marcas foram impressas desde a obra inaugural da psicanálise de 1900, Traumdeutung. Assim como carrega-se as heranças de Einstein, Darwin e Marx impressas nas entranhas, talvez não seja exagero dizer que quase todo ser humano porta algum gene psicanalítico em seu DNA. O inconsciente saiu do chão de Viena para alçar seus voos na linguagem que se atém aos lapsos, aos engasgos, aos deslocamentos, às condensações e aos sistemas psíquicos de defesa. Entretanto, a linguagem tem exigido rasgos bem maiores do que esses pequenos desvios ou escapes pelas brechas estreitas. Talvez ela precise ser virada do avesso. Fazer isso, porém, demanda que o corpo – que não é natureza – entre na jogada investigativa. O autor não ocupará um lugar indecifrável e descolado do que escreve. A reconfiguração epistemológica proposta por Preciado é feita de sangue, artifícios e registros reflexivos. Freud experimentou esse procedimento em vários momentos. Limites contra a onipotência narcísica devem apresentar-se na própria confecção textual de um trabalho reflexivo de psicanálise. Serão os tropeços inerentes à vida desejante do autor a imporem seus limites – algo que ocorre de maneira inesperada no vagar por um caminho incerto que explore o erotismo e as vulnerabilidades de toda existência. 

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