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Jéssica Kellen Rodrigues

O feminismo através das lentes da mulher negra

Jéssica Kellen Rodrigues


A autocrítica, enquanto ferramenta de análise dos processos e dos caminhos percorridos por um grupo, se apresenta como um meio possível para o desenvolvimento constante de movimentos diversos. Mas, fato é que, na prática, a autocrítica não é muito utilizada. E, quem conhece a história do feminismo sabe que este movimento deixou muita a desejar neste quesito e algumas feministas ainda se recusam a fazê-la, o que não parece ser diferente de outros movimentos. Houve um tempo em que muitas negavam as pautas das mulheres negras e mulheres indígenas, sob o pretexto de que "iriam fragmentar o movimento e enfraquecê-lo" caso viessem a acrescentar outras demandas que não apenas o gênero em sua pauta principal. E, ainda que tenhamos avançado nas pautas e nomeado as partes que integram o feminismo, ou melhor, nomeado as experiências que compõem as vivências das mulheres que constituem esse feminismo, é preciso manter um olhar constante e atento para nossos caminhos, promovendo a então, famigerada e pouco usada, autocrítica.


Um avanço importante que temos fomentado internamente é a luta –  não tão recente, mas, ainda presente –  pela descolonização do feminismo. Descolonizar os feminismos passa por uma reflexão crítica do que podemos chamar de “feminismo hegemônico” e, com essa reflexão crítica, podemos fazer uma análise realista das condições sociais dos grupos que esse feminismo pretende (ou não) abarcar. Quando falo em análise realista, estou convidando a pensar essas condições sociais no que elas são de fato, e não como elas foram estabelecidas de maneira ideal na tentativa fantasiosa de unificação de lutas que, no final das contas, só leva em consideração a sujeição que afeta a cada uma. O que está em jogo nessa reflexão é compreender que as sociedades são compostas por diversos marcadores sociais que, enquanto ferramentas de sujeição, atravessam grupos oprimidos de formas distintas, resultando em violências distintas e em condições de vivências diversas. Para pensar um pouco sobre essa questão, duas perspectivas de leitura dessa realidade parecem se completar em duas intelectuais negras brasileiras, Sueli Carneiro e Lélia Gonzalez. Ambas as autoras refletem sobre a necessidade de se pensar a dupla opressão sofrida por mulheres negras, as opressões de gênero e de raça, para fazer um diagnóstico realista da formação da sociedade brasileira, pois elas sustentam que, somente com base nesse diagnóstico, é que será possível começar a desenvolver ferramentas mais realistas de resistência.


Dito isso, para fazer esse diagnóstico é preciso voltar o olhar para a luta feminista e, de acordo com Carneiro, é preciso marcar as aquisições importantes do movimento feminista. No seu artigo “Mulheres em movimento” (2003), a autora destaca essas conquistas e aponta para o importante papel do movimento feminista nos encaminhamentos da constituição brasileira de 1988 e de outras lutas e conquistas que esse movimento pavimentou. No entanto, nos diz Carneiro:


(...) em conformidade com outros movimentos sociais progressistas da sociedade brasileira, o feminismo esteve, também, por longo tempo, prisioneiro da visão eurocêntrica e universalizante das mulheres. A consequência disso foi a incapacidade de reconhecer as diferenças e desigualdades presentes no universo feminino, a despeito da identidade biológica. Dessa forma, as vozes silenciadas e os corpos estigmatizados de mulheres vítimas de outras formas de opressão além do sexismo, continuaram no silêncio e na invisibilidade.


Esse silêncio apontado por Carneiro diz respeito a outros marcadores que não entram no campo de visão do movimento feminista. Isso porque, o movimento feminista permanece preso a um único marcador social, o gênero e, vejam, Carneiro afirma que não se trata de negar esse marcador, ele está lá e precisa ser debatido; no entanto, essa opressão não é única e é preciso tirar do silêncio e da invisibilidade outras vozes que vivenciam também outros marcadores de opressão. A outra forma de opressão que Carneiro aponta como decisiva para pensar a formação da sociedade brasileira é o racismo. Então, o que Carneiro sugere é que para a ampliação das conquistas desse movimento feminista, ou seja, para que ele ganhe contornos ainda mais democráticos, ele precisa ser enegrecido. E precisa ser enegrecido não enquanto anulação da história da luta do movimento, mas como algo a ser somado. Somar a luta contra opressão de raça a este movimento é somar um marcador que permita ampliar o alcance das conquistas para o próprio movimento feminista e, que permita pensar a mulher negra que é um atravessar de diferentes opressões. Se concordamos com esse diagnóstico, precisamos destacar que o simples olhar para opressão de gênero não trata das sujeições das mulheres negras (e aqui podemos dizer o mesmo para as mulheres indígenas).


Então, a questão é: é suficiente um feminismo que se pauta em uma visão “eurocêntrica e universalizante das mulheres” para se pensar em uma construção de luta comum e igualitária? No que diz respeito ao movimento que nasce no Brasil e que tem como pauta principal a mulher brasileira, é possível se render a essa visão “eurocêntrica e universalizante das mulheres”? Sim! É possível, na medida em que se nega um olhar para “as mulheres brasileiras” em prol da ideia de “a mulher” eurocêntrica que é atravessada pela opressão de gênero. E é assim que perdemos a dimensão das opressões que atravessam nossa sociedade, porque deixamos de olhar para a formação da sociedade e para a agência da mulher negra na luta e na constituição desse país, isto é, deixamos de olhar para o protagonismo da mulher negra no país, pois ela, sendo parte constituinte desse país, é  atravessada por todas as opressões já descritas.


A agência dessa mulher negra traz para o debate uma questão significativa, pois não se trata mais de pensá-la como unicamente sofredora de opressões, mas, significa pensá-la como sujeito de modificação, constituição e transformação, isso porque ela é agente, ela é uma das responsáveis pela formação social brasileira. Esse olhar para a agência tanto na literatura de Carneiro quanto na literatura de Gonzalez é significativo porque ambas, ao analisarem a questão racial no país, localizam uma tentativa de negação da capacidade de agência do negro. Essa negação da capacidade do negro, entre outras coisas, fundamenta essa visão eurocêntrica e universalizante da mulher para Carneiro e fundamenta a negação da africanidade da cultura brasileira em Gonzalez. Para ampliar sua visão sobre esta questão Carneiro recorre à Foucault e faz uma releitura do seu conceito de  dispositivo – que são estratégias de relações de forças que sustentam saberes e são por eles sustentados – para então construir um novo conceito, uma ideia de dispositivo de racialidade, que é a maneira pela qual as estruturas perpetuam o racismo por meio do confisco da racionalidade do povo negro, isto é, impedindo o negro de ser sujeito do conhecimento, desprezando toda e qualquer racionalidade negra. O objetivo de Carneiro ao criar este dispositivo de racialidade é fazer uma crítica `a maneira como a educação, por vezes, colabora para manutenção desse racismo. É neste aspecto que ela aponta para o epistemicídio. (Toda essa investigação encontra-se em sua tese de doutorado, defendida em 2005 – “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”). O processo de epistemicídio para a autora está sendo internalizado, inclusive, pela educação. Carneiro nos mostra nessa tese como o povo negro é oprimido, sem deixar, no entanto, de agir e promover mudanças via ação. Então, ainda com a opressão, há uma resistência por parte do povo negro, especialmente, de mulheres negras via agência.  Dito isso, Carneiro citando Gonzalez nos diz que;

As concepções do feminismo brasileiro padeciam de duas dificuldades para as mulheres negras: de um lado, o viés eurocentrista do feminismo brasileiro, ao omitir a centralidade da questão de raça nas hierarquias de gênero presentes na sociedade, e ao universalizar os valores de uma cultura particular (a ocidental) para o conjunto das mulheres, sem as mediações que os processos de dominação, violência e exploração que estão na base da interação entre brancos e não-brancos, constitui-se em mais um eixo articulador do mito da democracia racial e do ideal de branqueamento. Por outro lado, também revela um distanciamento da realidade vivida pela mulher negra ao negar toda uma história feita de resistências e de lutas, em que essa mulher tem sido protagonista graças à dinâmica de uma memória cultural ancestral – que nada tem a ver com o eurocentrismo desse tipo de feminismo.


Gonzalez parece antecipar aspectos do debate acerca do epistemicídio. Entre esses aspectos está o fato de que ela descreve a tentativa de infantilização do negro, isto é, o negro como sendo o infans, aquele que não fala mas é falado pelo o outro, e a epígrafe do seu texto “Racismo e sexismo na cultura brasileira” ilustra bem esse aspecto. A epígrafe relata a situação vivenciada por negros convidados a participar de um evento que falaria sobre o negro, mas esses negros foram convidados única e simplesmente para participar como ouvintes enquanto os brancos os diziam. Em um determinado momento, uma mulher negra é convidada a falar no microfone para responder uma questão e denuncia aquela situação causando certo alvoroço. A mulher negra ao tomar seu espaço de voz é considerada atrevida por aqueles que acompanhavam a situação por não aceitar aquilo que lhe era imposto.


O silenciamento e a não aceitação da denúncia da arbitrariedade da situação desnudam, ainda que indiretamente, as barreiras criadas para impedir a construção da história do negro contada por ele mesmo. E isso é necessário na medida em que, ao contar a sua própria história, o negro mostra o papel central das suas vivências e das suas lutas na construção cultural do Brasil. Cultura essa que é negra. 


Entretanto, ainda que essa cultura seja negra, como afirma Gonzalez, fato é que as instituições e o sistema são racistas.  Esse racismo é o instrumento do colonizador para impor a ideia de sua superioridade em face do colonizado. Se associarmos esse aspecto com o que Carneiro afirma, podemos pensar que o dispositivo de racialização cumpre justamente esse propósito: manter a superioridade do colonizador frente ao colonizado. E, para Gonzalez, essa ferramenta visa manter uma certa dinâmica que sustenta essa relação de dominação. O racismo enquanto instrumento de manutenção da opressão possui, segundo Gonzalez, duas formas de realização, a saber, o racismo aberto, por segregação, e o racismo disfarçado.


O racismo por segregação tem como exemplo de expressão o período de segregação racial nos EUA. O racismo disfarçado é aquele racismo encontrado nas regiões latino-americanas que foram colonizadas por países que, por possuírem uma política de superioridade hierárquica de classes, acabam por não depender da segregação como meio político de opressão. É o racismo comum nos países latinos que a autora associa ao que ela chama de racismo por denegação. Trata-se de denegação na medida em que esse tipo de racismo exige para si uma hereditariedade exclusivamente europeia que não lhe pertence, negando as origens negras que lhe são próprias  Essa negação acontece não só na negação da presença negra na cultura, mas também na negação da presença negra na educação (promovendo o epistemicídio) e nas lutas que elegem uma única “mulher”  para a qual voltar sua atenção.


É neste sentido que a Mulher negra –  ao falar na epígrafe do texto de Gonzalez – é interrompida, porque seu falar faz a sociedade lembrar das origens negras que pretende ocultar. Ao falar, a mulher negra move as estruturas e, no caso da cultura brasileira, isso acontece porque ela é a mãe. É enquanto mãe preta, presente na economia familiar, na figura da babá e da doméstica, que a mulher negra ensina para os filhos dessa cultura o pretuguês que marca nossa língua. 


É na linguagem que a mulher negra marca a origem negra, e foi na linguagem que a mulher negra começou a movimentar a estrutura racista da condição cultural do Brasil impedindo o embranquecimento dessa cultura. A linguagem é, portanto, terreno de luta; não à toa o texto de Gonzalez, dentro da academia, é escrito em pretuguês. É uma tentativa de acabar com o ciclo do epistemicídio recorrente. A inquietação que nos resta é observar que o enegrecimento do feminismo e o combate ao epistemicídio só se tornariam pautas do feminismo, no processo de descolonização, por meio de uma autocrítica muito desejada, mas, praticada somente sob muita luta. 

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