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Ana C. Minozzo

O cuidado comum: um cuidado ecofeminista e o respiro da psicanálise

Ana Carolina Minozzo


Com a crise generalizada causada pela Covid-19, que ainda se agrava em algumas partes do mundo, a questão do cuidado tem retornado ao centro dos debates. Fundamental em reinvindicações feministas da década de 1970 — como na campanha Wages for Housework, por exemplo —, a discussão e a disputa sobre as condições de quem cuida, e até mesmo do que se consiste em cuidado, nos interessam por sua relação íntima com as possibilidades da vida em comum. Na contracorrente do modelo hegemônico individualizante de práticas de cuidado institucionais (em escolas, hospitais, asilos, centros de saúde mental etc.) e informais (de crianças, adoentados, idosos etc. em casa e em comunidades; do meio ambiente e animais, entre outros, por grupos da sociedade civil), um deslocamento da estrutura privada e familiar para uma matriz do comum se faz urgente. Se observarmos os modelos de cuidado em saúde mental, e da função da psicanálise aí aplicada, percebemos que uma reorientação teórica e prática apresenta-se como necessária no contexto pós-pandemia. Neste pequeno texto, argumento pela necessidade de uma reorientação ecofeminista ­–baseada no mutualismo, na interdependência entre humanos e não-humanos – na psicanálise em cima desta compreensão do cuidado e do comum.

 

Em Re-enchanting the World: Feminism and the Politics of the Commons, de 2019, a italiana Silvia Federici retoma a história da alienação brutal da esfera de um plano comum, engendrada pelo estabelecimento do humanismo colonial e patriarcal do capitalismo moderno, na qual as relações de produção coletivas — em sintonia com a natureza e menos extrativistas — são apagadas e suprimidas constantemente. O frescor da obra vem dos inúmeros exemplos e casos de lutas coletivas que ilustram as possibilidades e a urgência de novas relações entre humanos e não humanos, desde grupos de autonomia reprodutiva à bancos de sementes vegetais. Em diálogo com seu livro mais conhecido, Calibã e a Bruxa, de 1998, e com obras marxistas e feministas contemporâneas, Federici advoga pelo “re-encantamento” do ser humano pelo mundo, por sua conexão total com os fluxos de produção da Terra como subversão à lógica divisora e exploradora, cada vez mais ativada pelo neoliberalismo zumbi que vivemos nos dias de hoje. Esse “re-encanto” envolve, portanto, uma reorientação subjetiva que, apesar de soar piegas, é potente: partir do âmbito do “eu” e dos “meus” para um plano do “nós”. Nesta lógica, compreender a pandemia do Coronavírus como um problema gerado a partir da exploração desenfreada do meio ambiente traz consigo a necessidade de uma reorientação do status do indivíduo. Do eu no mundo partimos para o eu do mundo.

 

É neste quebra-cabeça, de emergência climática e suas consequências e de emergências de práticas dissonantes à lógica “desencantada”, que a questão do cuidado toma outra dimensão. Ou, ainda, é na crise que os problemas com a noção hegemônica do cuidado (e da sua falta) se fazem urgentes.

 

Intertítulo

Quem cuida? Quem merece cuidado? Quem cuida de quem cuida?  Essas perguntas borbulham no Reino Unido (onde moro) desde que, no primeiro lockdown de 2020, um desconforto, ou melhor, uma rixa artificial entre “mulheres com filhos em casa para cuidar” e “mulheres sem filhos” (portanto, sem essa demanda de cuidado) tomou conta das redes sociais. Trabalhar de casa e cuidar da casa e dos de casa demonstrou-se uma jornada tripla com gênero e cor, visto que grande parte da força de trabalho de setores como saúde, assistência social e educação, entre outros também essenciais, é composta por mulheres não brancas e/ou imigrantes. Nas redes sociais, rapidamente, a questão básica da solidariedade feminista transbordou em mais uma divisão na qual o inimigo comum, o capitalismo patriarcal, perdia-se de vista.

 

Tarefas domésticas, ensino básico e cuidado de crianças e bebês, assim como serviços de limpeza, cuidado de idosos e de pessoas adoentadas foram reconhecidos pelo Estado como essenciais. Porém, os “trabalhadores essenciais” não receberam tal reconhecimento para além de minutos de palmas nas janelas das casas e apartamentos ao anoitecer. Salários congelados, contratos precários, circunstâncias imigratórias desumanas e, em muitos casos, falta de direito prioritário à vacinação, caracterizaram o tratamento desses profissionais pelo governo e pela parcela significativa da sociedade que continua votando neste (as eleições locais de Maio 2021 confirmaram uma derrota brutal do partido dos trabalhadores, Labour, e um suporte ainda maior aos Conservatives). Dentro de casa, mulheres não só sofreram com o aumento da violência doméstica como não foram contempladas pelo manejo estatal da crise sanitária e social. Dessa forma, e mais uma vez, carregaram o peso de reascender a economia na própria carne.

 

Este panorama revela o quão atual a questão do trabalho e da reprodução social, assim como das estruturas de parentesco (kinship), estão fundamentalmente amarradas. Embora os movimentos feministas tenham denunciado esta aliança mortífera há décadas, o patriarcado capitalista está, como dizemos aqui, alive and kicking. É um modelo que oprime, viola e extrai a vida das mulheres, dos povos subalternizados e das comunidades, e das pessoas não hétero/binárias — o que já sabemos, mas sempre vale lembrar.

 

O modelo familiar, privado e individualizante atravessa nossas teorias, práticas e políticas públicas de cuidado. Sustentados, em sua raiz, pelo “desencanto” que descreve Federici, os “eus no mundo’ se constituem a partir de um processo de separação do comum, das coletividades e daquilo que muitos dos negacionistas da pandemia teimam em esquecer: o ar que respiramos. Nos dias de hoje, como descreve Achille Mbembe no artigo “Le droit universel à la respiration”, o direito universal de respirar torna-se uma força para o “re-encantamento”. Apesar de soar místico, mítico e um tanto “New Age mother earthy”, tal “re-encantar ” (ou situar-se como eu do mundo) é, pelo contrário, um assunto bastante materialista e político em sua concretude.  O encantamento, portanto, conota uma ética ecofeminista.

 

No que toca o mundo da práxis psi, e da psicanálise, mais especificamente, a reavaliação das estruturas de cuidado exige muita seriedade. Nosso campo (e aqui escrevo como psicanalista feminista) é ainda muito atrasado em relação ao “ar que respiramos”, promovendo modelos subjetivos necessariamente desencantados. Ainda falamos em Édipo, papai e mamãe, ainda há analistas chocados com pessoas trans e não-binárias (querendo sempre encaixá-las em nossos arcaicos textos clássicos) e, com toda nuance, ainda defendemos que o modelo da “separação” (se-parire, para Lacan) é necessário para uma psique saudável e autônoma. Há espaço para sujeitos encantados, do mundo e para uma ética do comum na psicanálise?

 

O campo do cuidado psi, e dos discursos hegemônicos sobre saúde mental, são testemunhos de uma política de alienação ética e afetiva que modula o sofrimento no escopo desse eu no mundo. Desde a publicação do DSM-III (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders), quando paradigmas biologistas e farmacêuticos ganharam mais espaço na psiquiatria, substituindo a força da psicanálise presente até a década de 1970, a biomedicalização da vida tem aumentado. Biohacking, terapias cognitivo-comportamentais online, Positive Psychology e o (tão popular no Brasil) coaching, assombram o futuro do cuidado ao lado de tendências de “wellness” e de patologização e medicalização exponencial da vida.  Se a psicanálise nos oferece uma plataforma para ouvir, atravessar e compreender o sofrimento, sempre em conjunto com as modulações e produções do inconsciente, dos campos de relações e afetos e dos referenciais simbólicos, seu “re-encantar” se faz ainda mais potente neste cenário apocalíptico.  

 

Pensar um campo do cuidado e do cuidado psi a partir do comum  é uma urgência da vida pós-Covid-19 e uma urgência, também, para o próprio fôlego e relevância da práxis psicanalítica. Ou construímos uma psicanálise ecofeminista, ou a psicanálise vai ficar sufocada, sem ar.

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