top of page
Fillipa Carneiro Silveira

Humana é a carne: sobre “Breve história da carne”


Fillipa Silveira

 

Quando Remédios ascendeu aos céus, deixando aturdidas todas aquelas mulheres que dobravam brancos lençóis de linho à luz do sol, disse – pálida –, na vida, jamais ter se sentido tão bem. E, ao dizê-lo, destacava-se da matéria, sendo ainda forma, alcançando os “altos ares onde nem os mais altos pássaros da memória podiam alcançar”. A personagem de Cem anos de solidão vilipendia as gerações de Buendias em Macondo por uma espécie de delicado e absurdamente irrefletido cinismo da carne. Vivia só de inadvertida contravenção, mas sem qualquer forma de misantropia determinada. Remédios apenas não era deste mundo. E pela curta passagem que nele fez, perturbou de tal forma a cabeça dos homens, que teriam vendido sua alma pelo toque do seu corpo, tanto mais ela se mostrava inteiramente indiferente a isso.    

O texto de Affortunati (é um nome muito intenso para ser preterido ao se referir a uma mulher!) é como um labirinto reverso, vivo, em que galerias estreitas, ora se distanciam, ora se tocam, num encontro trágico: o dentro e o fora da carne reclamando sua escrita. Sobre este labirinto, paira Remédios, subindo aos céus em lençóis de linho branco. Não somos, absolutamente, Remédios. E a carne sabe disso.

A carne convida igualmente ao erotismo e ao canibalismo. É o registro material do erótico, do desejo que aniquila e que, encontrando outro desejo, suprassume é o Deus mesmo! Retornando ao em-si. O erotismo, como diz Bataille, é a ultrapassagem de Deus em todos os sentidos, uma verdade paradoxal que, com efeito, está no centro de nossas representações sobre o limiar da vermelha vida e da morte cinzenta e podre. É uma experiência apaixonada de horror com a linguagem e com a sexualidade, chamada a falar para além do choque, da surpresa e da rejeição.


O trágico da carne viva é saber-se incômodo e não se conformar com os limites da linguagem – os limites do humano. A carne, esta humana, tal como na natureza cosmopolítica de Immanuel Kant, jamais poderá ser mero pedaço de matéria, pois que ela é atravessada por todos os espetos pontiagudos do saber-se vermelha, sangrenta, doce, quente, sedutora, violenta e cruel. Existe é carne humana. Ela reclama um lugar que é o limite mesmo do humano: que é próprio não “de” sua finitude, mas “a partir” dela. É que não tem jeito. E nos emaranhamos mais neste labirinto. Remédios sabia disso. E, a isso, não resistia nem se entregava, afinal “... até o último instante em que esteve na Terra ignorou que o seu irreparável destino de fêmea perturbadora era uma desgraça cotidiana”.        


Por isso um labirinto reverso: não é uma saída o que se busca de dentro desse texto. E, sim, um emaranhamento inevitável na própria carne e em seu dispor de dizer a abjeção, em uma escrita que, sabemos, não será costurada. Passeamos por uma galeria deste incômodo labirinto visceral, diante do grito frustrado da insaciedade da carne, para, ao final dela, terminarmos na mesa de jantar da autora, onde uma família espeta, dilacera e deglute pedaços disfarçados de carne viva. Perto dali, numa viela ao lado, uma criança pede à mãe que lhe permita ficar por entre os outros, que lhe presenteie com o amuleto do disfarce cotidiano: o telefone, que permite o ilusório acesso à saída do labirinto, ainda que só por hoje.   

Toda alimentação é canibal, exceto meus almoços veganos. Afinal, tudo o que goza, grita e chora é carne viva e, assim, é carne humana, como no vestido de carne que envelopa o corpo da moça na obra da escultora canadense.


E toda escrita é charque. Afinal, para além dos frescos carpaccios da fala, é na carne guardada, maturada pela reclusão da escritura e pelo sal do ensimesmamento, que o texto burilado surge sofrido, fenomenal. Trabalhado pela ação do tempo, que é o nosso, e socado com as farinhas do pensamento vagabundo, deixa, na boca, o sabor perfumado de “todos os temperos” das cozinheiras nordestinas. Eu estou bem no meio de uma interseção desse labirinto. Daqui de baixo vejo Remédios acima, lá longe. Ela precisou ir, pois as pessoas supunham que ela tinha poderes de morte. E devia ter mesmo:


“Embora alguns homens levianos de palavra sentissem prazer em dizer que bem valia a pena sacrificar a vida por uma noite de amor com tão perturbadora mulher, a verdade é que nenhum se esforçou por consegui-lo. Talvez não só para vencê-la, como também para afastar os seus perigos, bastasse um sentimento tão primitivo e simples como o amor, mas isso foi a única coisa que não ocorreu a ninguém”.


Contra a origem do mundo, a origem da guerra se fez valer mais uma vez. Remédios escapou.


A autora de Breve história da carne pergunta sobre disfarçar, fazer que não viu, quando o espelho se mostrou. O disfarce é real. A escrita conduz, canaliza em veios, sem abrandar, a obsessão pelo aspecto brilhoso, carnoso daquilo que, no entanto, é feito apenas de pensamento. Como naquele, obsessivo, em que desejamos e, ao mesmo tempo, tememos, terrivelmente, experimentar; a visão das próprias vísceras. O nosso “real” do lado de dentro. Mas para além de “disfarce”, é haver-se com o que você precisava parir para além de seus filhos, mulher: um museu da carne, pulsante de histórias e sangue, sobretudo negro, correndo nos corpos dilacerados pela escravidão, e nas veias dos filhos das mães pretas do Brasil. 


Aqui do meu lado, você me põe a escrever – me arrancando violentamente de um torpor paralisante de descrença, do pavor estagnado da angústia. É... eu não estava mesmo preparada para poesia. Que bom! Pois agora não tenho mais onde me segurar e vejo o pavor virar encanto curioso sobre “onde essa sua desmedida pode dar”. Acode, Remédios! Essa “matéria etérea de carne”, aonde nos leva? Quem é ela? O fígado de Prometeu? A glândula pineal de Descartes? Um fio de músculo tão tênue que se poderia preservar, “num truque banal”, da ação do tempo e da morte? Me sinto o acrobata do circo místico:


“Qual

Não sei se é nova ilusão

Se após o salto mortal

Existe outra encarnação

Não sei se é vida real

 

... Um invisível cordão...

 

Após o salto mortal”.

Comments


Commenting has been turned off.
bottom of page