top of page
Fillipa Carneiro Silveira

Entre feminismos e marxismos: contradições apreendidas sob uma “teoria unitária”

Fillipa Carneiro Silveira[1]

 

Um dos temas mais presentes no campo das lutas feministas é a questão da interseccionalidade. Este termo aponta para o entrecruzamento de formas distintas – assimétricas, heterogêneas – de opressão sofridas pelas mulheres e designadas por marcadores sociais, políticos, econômicos e culturais de raça, gênero e classe. Atribui-se à chamada Segunda Onda do feminismo a incorporação, por parte deste movimento, de pautas oriundas da Nova Esquerda que, no decorrer dos anos de 1970, diversificaram as demandas por justiça, complexificando o entendimento do modo como a exploração capitalista se exerce sobre tudo o que vive, apropria-se dos corpos humanos, assujeitando subjetividades em modelos opressores e normalizados de existência.


Ao longo das décadas de 1980 e 1990, as lutas feministas passaram a incorporar, para além da demanda por uma ampliação no campo dos direitos e da política institucional, reinvindicações que envolviam, por exemplo, direitos reprodutivos, remuneração dos trabalhos domésticos e de cuidado, e o reconhecimento de formas de sexualidade dissidentes relativamente ao modelo cis-gênero-heteronormativo. Nesse contexto, se tornariam cada vez mais contundentes as críticas a um feminismo de pretensões universalistas diante da constatação dos modos desiguais como as mulheres estão marcadas econômica, política, social e culturalmente.


Vivemos a plena operação de um racismo estrutural e institucional que atualiza cotidianamente mais de trezentos anos de regime escravocrata, e que está na base de uma necropolítica governamental de Estado, fazendo morrer e naturalizando a morte de corpos negros. Isso permite compreender, inclusive, a objeção sobre colocar do problema do feminismo sob este viés: como uma espécie “apêndice”, um condicionamento periférico ao que seria uma luta feminista primeira e universal, assegurada por uma história cujo registro é também ele expressão da dominação branca. É bastante pertinente que uma tal observação seja fundamental para o feminismo negro e para demas objeções que, neste campo de lutas, se dá pela via da noção de interseccionalidade.  


Somos o quinto país no mundo que mais mata mulheres, e que vê crescer números de feminicídio e de violência sexual e doméstica, em grande medida esse debate vem à tona em decorrência da ampliação da política de acompanhamento de dados que, com efeito, não são novos, trazendo para  o plano do registro práticas  patriarcais e misóginas antigas e consolidadas. Dentro desses números, marcadores de raça e classe assim como as dissimetrias econômicas, sociais e políticas entre as diferentes regiões de um país continental recordam a necessidade de as análises e lutas políticas estarem atentas a condições específicas de exploração e opressão. Diante deste cenário, estamos também longe de ter garantido o usufruto de plenos direitos a pessoas e comunidades cuja forma de existência contrastam com modelos opressores de família, de produção e reprodução, e de uma vivência estreita e normativa de sexualidade.  

  

Assim, os feminismos se veem eles mesmos implicados, muitas vezes uns relativamente aos outros, na luta contra formas de violência, opressão e exploração que se perpetuam e sustentam uma espécie de “vontade de neutralidade” que obscurece a materialidade dos privilégios reservados ao ser humano do sexo masculino, adulto, caucasiano, neurotípico, cisgênero e heterossexual. Dessa perspectiva de base, relega-se a maior parte da humanidade a uma condição de desvio ou divergência, revelando a intricada estrutura estratégica de poder que envolve a produção (de recursos, riquezas e saberes!) e as instituições políticas em nossa sociedade. Com efeito, são indiscutivelmente urgentes os debates sobre todo o campo complexo de forças no interior do qual se possam sustentar lutas feministas que efetivamente promovam a reversão do quadro assimétrico e entrecortado das relações de dominação e opressão.


Historicamente, no entanto, o enfrentamento desse estado de coisas por parte do movimento feminista se expressou num impasse que representou uma condição de abrandamento de que o capitalismo neoliberal não deixou de se favorecer. Trata-se da proliferação de uma desconfiança crescente relativamente às teorias feministas marxistas, em função do alegado reducionismo econômico que estaria em sua base, e que as tornaria reprodutoras de formas específicas de opressão justamente por ignorá-las. Segundo essa perspectiva, o marxismo, pela ênfase na dimensão material das relações sociais seria, na melhor das hipóteses, cego às opressões de raça e gênero. Esse movimento resultou num deslocamento da recusa do sistema capitalista como foco central de todas as injustiças sociais e na pulverização das lutas por emancipação em demandas identitárias fragmentadas.


Dentro desse quadro, algumas feministas sustentam que a dominação patriarcal e a opressão racial se exercem de forma autônoma e indiferente ao capitalismo, a despeito da exploração de classe nas relações de produção. Fosse a produção articulada de outra maneira, o patriarcado, assim como os sistemas de opressão racial encontrariam suas formas de funcionamento, afinal são anteriores historicamente ao próprio advento do modo de produção capitalista. Para as defensoras dessa tese, o entrecruzamento das injustiças associadas ao trabalho e sua divisão com base no sexo, assim como o racismo e demais formas de subjugação e discriminação, são articuláveis de maneira apenas acidental com a exploração de classe, uma vez que tais práticas de segregação e exploração associadas ao patriarcado e à escravidão são historicamente anteriores à formação do modo de produção capitalista.


Contrariamente a elas é que se desenvolveram as teorias da interseccionalidade e aquelas reunidas sob um termo menos rebatido, o da consubstancialidade das relações sociais de exploração e opressão. Ambas as teorias entendem ser necessária uma complexificação dessas implicações entre dominação e opressão, considerando, no entanto, a classe uma categoria meramente econômica.

O que difere a interseccionalidade da consubstancialidade dentro deste grupo são as distintas maneiras de se considerar como ocorre a interação entre as diferentes categorias. Segundo a tese da interseccionalidade, as relações de dominação patriarcal e racial se implicam e reforçam mutuamente relativamente à exploração capitalista, mas cada uma dessas relações pode ser entendida separadamente; as interseções entre as categorias constituem relações distintas a cada arranjo.


A tese da consubstancialidade das relações de dominação, exploração e opressão também sustenta que o patriarcado, o racismo e a exploração de classe implicam-se mutuamente, porém não entende que essas categorias designem posições autônomas, identitárias e dadas previamente. Para a teoria da consubstancialidade, essas relações são dinâmicas e ambivalentes, uma vez que se desenvolvem de maneira coextensiva umas relativamente às outras. Não seria possível pensá-las em separado, apenas no nível da análise. Em pleno funcionamento na sociedade, elas constituem um todo emaranhado em constante modificação. Numa palavra, o que define a forma como uma pessoa se torna vítima de violência e opressão não é o que ela é, sua identidade, mas o lugar que ela ocupa na dinâmica complexa de relações e a forma como o ocupa. No entanto, assim como na teoria da interseccionalidade, essa tese separa a dimensão material das relações sociais – a econômica – de outra que seria de ordem ideológica; as relações patriarcais e as de opressão racial.


Na contramão desses dois grupos de perspectivas, a chamada “teoria unitária” recusa o funcionamento autônomo do patriarcado e dos sistemas de opressão racial, além de questionar o alegado reducionismo econômico atribuído ao marxismo. Essa teoria centra-se numa tese de fundo: não há leis puramente econômicas com as quais viriam interagir operadores de ordem social, cultural ou ideológica: é que o capitalismo constitui “uma complexa e articulada ordem social” cujas manifestações se mostram de forma fragmentada.


Dentre as feministas que sustentam teses nesse sentido, destaco a filósofa italiana Cinzia Arruzza, que retoma elementos do feminismo marxista desenvolvido na década de 1980 em torno de uma “teoria unitária” para oferecer um encaminhamento bastante pertinente a essa polêmica. Arruzza, atenta aos modos assimétricos como a violência e opressão sofridas pelas mulheres, considera, no entanto que, ao se separarem analiticamente em identidades, substâncias e categorias em mútua implicação e intersecção, essas lutas terminam por se desviar de uma crítica fundamental ao capitalismo, modo de produção e sistema social cuja forma mesma de operar é injusta, opressora e exploradora por natureza. Não se trata, no entanto, de alegar a precedência da classe sobre as demais categorias e marcadores, mas de desvencilhar-se de uma acepção redutora dessa noção e da compreensão sobre como opera o próprio sistema capitalista, para a qual teria contribuído o pensamento de Karl Marx. Aqui é notável a presença de uma disputa, a um tempo, política e discursiva, que revela a existência de muitos marxismos, assim como de diferentes feminismos.


Relativamente a essas teses, a teoria unitária considera que, apesar de as relações de dominação patriarcais e de raça serem anteriores ao desenvolvimento do capitalismo, o advento deste modo de produção trouxe uma configuração tal que elas não podem mais ser pensadas como independentes e autônomos relativamente a ele. Isso não quer dizer que indivíduos e grupos racializados e sujeitos à opressão de gênero não estejam numa condição de maior vulnerabilidade. O que a tese unitária sustenta é que relações de dominação patriarcal, de exploração, opressão e alienação constituem uma totalidade articulada e contraditória e não sistemas duplos ou triplos. Uma vez que não há leis econômicas puras, independentes de opressão e alienação; é preciso, então, pensar as relações de produção e de reprodução como uma unidade. Para tanto, é necessário entender que a exploração de classe não se restringe a uma questão de ordem econômica, pois a classe ela mesma não é pensada como meramente rentista ou como algo que se esgote no campo da distribuição de riquezas.


Desse modo, por mais que relações de dominação sejam anteriores à lógica capitalista, uma vez instaurada, ela produz e replica de uma forma muito singular isso que termina por aparecer como sistemas duplos ou triplos de opressão segundo uma percepção fragmentada da realidade. Essas formas de opressão estão profundamente enraizadas numa estrita divisão do trabalho e numa forma específica da família, relacionadas à expropriação da terra e da acumulação primitiva de capital nos primórdios do capitalismo. De um lugar originário de produção, a família teria passado a constituir uma entidade privada e ideologicamente separada daquela da produção de mercadorias e do próprio mercado. Com isso, se teria apartado todo o trabalho reprodutivo, doméstico, de cuidado e de manutenção da vida humana das relações de produção e valor. Isso está diretamente relacionado às pessoas e suas subjetividades, uma vez que essa divisão do trabalho está enredada em formas políticas, institucionais e culturais, reverberando nas formas mais sutis e violentas como corpos generificados e racializados são vítimas de opressão e exploração.


É certo, no entanto, que a teoria marxista, por si só, não pode oferecer todos os elementos necessários à compreensão da complexidade assimétrica do exercício do biopoder e da exploração sobre os corpos femininos generificados, racializados além de pauperizados. É certo que a dominação patriarcal remonta aos mais antigos registros históricos, assim como as formas autóctones de opressão racial e de servidão antecedem em muito o tráfico negreiro, a expansão econômica imperialista europeia, o sistema de plantation; o agronegócio. Mas diante desses que são dados históricos atualizados na atual e complexa malha de poder exercido por poucos grupos corporativos que controlam fortunas maiores que os próprios produtos internos das nações em que estão sediadas é impossível não colocar na ordem do dia o cento irradiador que é a propriedade privada de bens de produção e as formas jurídicas que a sustenta e legaliza.     

Ao longo da década de 1980, o feminismo marxista propôs a reelaboração do conceito de “reprodução social”, no qual a teria unitária se assenta. A noção de reprodução social entendida no sentido específico de reprodução e manutenção da vida humana para reprodução do próprio capital ajuda a compreender o modo como o sistema capitalista se apropria de formas específicas de opressão que operam no interior da própria classe social, de modo que a alienação da esfera produtiva aliena de maneira muito mais contundente as mulheres de seu trabalho e de sua produção. Podemos dizer que as formas de vida relacionadas ao que aquela divisão primeira do trabalho relegou historicamente ao feminino impacta muito profundamente no modo como o trabalho foi dividido e moldou a massificação das populações nas sociedades industrializadas e urbanizadas no capitalismo avançado. Desse modo, a desmonetização desse trabalho não está apertada da desmoralização característica de práticas misóginas, assim como não se desconecta da herança colonialista e da necropolítica imperialista que precariza corpos não brancos.


A noção marxista de reprodução social, sob a teoria unitária, fica assim complexificada e ampliada. Para além da imposição social biologicamente fundamentada nos úteros femininos como instrumentos de reprodução da espécie, as mulheres terminam também por serem assujeitadas a um lugar determinado no domínio privado da família, no qual assumem um papel de cuidadora “natural”, exercendo funções apartadas do sistema de produção de mercadorias, desempenhando trabalhos não ou absolutamente mal remunerados. Espera-se que as mulheres exerçam esse trabalho unicamente “por dedicação e amor” o que não significa apenas uma forma de injustiça – algo relativo ao campo do Direito, mas se enraíza profundamente na materialidade da alienação de sua força de trabalho e da determinação de seu valor.   


A partir da teoria unitária, podemos ampliar o que opera em filigrana no interior do sistema capitalista, orientando as opressões de gênero e de raça e o significado social a eles atribuídos, relegando à marginalidade corpos e subjetividades não brancas e não cis-gênero. Parece-me contribuir para melhor apreender a complexidade do fenômeno da escravidão, da exploração e racialização de corpos e subjetividades assujeitados e submetidos a uma necropolítica neoliberal que “mata para fazer viver”, sustentando privilégios de um lado e precarizando de outro, para manter ativa a funcionalidade mínima de sujeitos produtivos.


Por fim, penso que a tese unitária auxilia a compreender fragmentações que, por mais que elucidem, na percepção imediata da realidade, práticas e discursos que denunciam formas singulares e específicas de opressão, são também absorvidas por uma política neoliberal que se vale de tais fragmentações retiradas de seu todo para perpetuar e naturalizar um complexo sistema de exploração e dominação que se alimenta justamente de mecanismos de fragmentação e alienação. Não considero, no entanto, que isso implique na necessidade de supressão de lutas específicas numa demanda universal e homogênea orientada por uma perspectiva única, afinal a pluralidade de lutas é também ela expressão política de uma sociedade de contradições. Penso, no entanto, na importância de haver aí a centralidade de um denominador comum: um pensamento e uma prática que sejam críticas do sistema capitalista, da propriedade privada dos bens de produção e do direito nele instituído.

   

Como afirma a historiadora Penelope Duggan (2013) no prólogo à edição inglesa do livro de Arruzza intitulado Ligações Perigosas – casamentos e divórcios entre marxismo e feminismo (2019, Usina Editorial), o objetivo da autora é o de:


Olhar para novas formas de integrar as ideias em torno das múltiplas formas de opressão, exploração e de identidades em uma análise marxista das relações sociais mais desenvolvida, integrando contradições como a opressão de mulheres e a opressão de raça sob a análise marxista da sociedade de classes, superando, portanto, a separação e a hierarquização de opressões pelas quais muitas correntes marxistas podem ter sido responsáveis”.


É importante pensar como o que nos constituiu historicamente permanece enraizado e atualizado em relações que são, a um só tempo, materiais e ideológicas, práticas e discursivas, institucionais e subjetivas. As mais ferrenhas lutas podem terminar sendo arrefecidas pelo potencial do próprio sistema capitalista neoliberal de apropriar-se das críticas a ele dirigidas, reforçando estruturas arraigadas de poder, como a necropolítica dos corpos e o epistemicídio dos saberes na mesma medida em que busca fortalecer a desconfiança relativamente à democracia, a importância da dimensão social e do comum da vida pública, poderosas ferramentas contra as perspectivas individualizantes e matrizes da força intrínseca das lutas de resistência política.



[1] Fillipa Carneiro Silveira é professora adjunta de Filosofia da Universidade Federal de Uberlândia (IFILO/ UFU) e doutora em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos.


Comments


Commenting has been turned off.
bottom of page