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Léa Silveira

Cerzindo romances familiares – “Phantom thread” e um certo lugar do gozo

Léa Silveira



Como a tentativa de matar alguém pode ser um gesto de sustentação da fantasia de quem se tenta matar? Esse é o adoravelmente detestável enigma posto em cena pelo diretor e roteirista Paul Thomas Anderson no filme Phantom thread, de 2017. Uma obra arrebatadora, cujo incômodo é costurado pelo tom da sutileza. Na trama, o jogo mortífero do gozo é apresentado sob o manto do esprit de finesse, trabalhado em oposição ao esprit de géometrie, inarredável da arte da costura. Um manto, um cobertor que se quer curto, deixando à mostra a libra de carne que, na ordem do humano, sói flertar com a morte. Às vezes mais, às vezes menos. O equilíbrio, quiçá possível, está sempre por um fio. A parte à mostra é nomeada: o desejo de ser never cursed.


O roteiro – do próprio diretor – entrelaça a relação erótica mórbida entre o protagonista, Reynolds Woodcock (Daniel Day-Lewis), e Alma (Vicky Krieps), sua musa, em uma série de deslizamentos que, a certa altura, desejará estancar. A que preço? 


Nomes nunca são arbitrários – velha “contra-lição” de Saussure – e os significantes, de forma inevitável, levam a adivinhar o contexto de onde se parte. 


Também eu deslizo por uma linha ao correr os riscos destas. Polissemias que se perdem entre traduções, mas das quais podemos gulosamente nos servir. Ganhar, em vez de perder. Perder para ganhar. Marca (necessária?) do lugar de enunciação.


Reynolds se faz estilista de roupas e sua primeira criação é o vestido de noiva da própria mãe, que o traja na cerimônia de seu segundo casamento. Quando a mãe falece, ele não encontra melhor implicação de si mesmo do que costurar tufos do cabelo dela no forro do paletó que usará, adiante, em seu primeiro encontro com Alma. Convém lembrar que os cabelos são o que permanece, por longo tempo, no processo de putrefação de um cadáver humano. Exumando-o, eles estão lá. Esconder tésseras nos forros será uma das marcas do estilo de Reynolds. Mas os cabelos darão lugar a palavras bordadas.


O protagonista embrenha-se e é embrenhado em uma fantasia de hipererotização do desamparo de um filho diante de sua mãe, aquela a quem se supõe fornecer o colo e o alimento. Desamparo, fome, regurgitação descrevem os ciclos de sua repetição pulsional, franqueada pela tarefa inspirada de produzir vestidos e vestidos. Vestido: indumentária feminina, dizem os nossos dicionaristas.


Recusar o alimento pode ser uma forma de exigir que a mãe se faça novamente presente, malgrado morta. 

Seduz pensar aqui na brincadeira do carretel de linha que Freud celebrizou em Além do princípio de prazer, talvez seu mais importante texto sobre o gozo. Vestir uma mulher pode ser um destino do desejo de amarrá-la, de envolvê-la em linhas que a prendam, mas que, ao serem desenoveladas, encenariam sua partida sob a condição do retorno. O estilista abre mão do vestido-produto ao inseri-lo no circuito das trocas. Os vestidos de Woodcock restituem tanto a presença quanto a ausência da mãe. Again and again.

Em sua epopeia afetiva, Woodcock parece buscar uma mulher que capture sua necessidade de vestir o objeto de amor pela tensão entre doar e morrer. No filme, a morte em questão deixa de ser a da mãe e passa a ser a dele. Em um de seus momentos de padecimento, ele vê a mãe vestida de noiva. E ela não lhe diz nada. 


O estilista apaixona-se por mulheres que pode vestir, mas que o frustram no desejo de ser apresentado à morte pela mulher amada. Uma morte a ser comida. Até que chega Alma.


Alma entra no furo, como uma agulha. Nele, insere sua própria linha de Parca ao perceber (ponti)agudamente a ambiguidade do alimento/veneno que seria a única entrada possível na fantasia daquele homem que, do alto de seu pedestal-berço, não faz concessões em suas exigênciasqdemandas. Ela entra na fantasia dele.


A fantasia dele: eu te humilho até que você alcance seu limite, até que você perceba que o único ato possível de reação à humilhação no jogo para o qual te convoquei é me matar. Ela aceita o convite. Ele responde: é isso mesmo que eu quero, empurrar essa lida com a morte até o limite.

Ele age como um canalha até suscitar na parceira essa anuência abismal. 


Até o momento em que percebe esse jogo, a espectadora talvez tenha a impressão de se tratar de um filme sobre um homem de caráter misógino. E apenas isso. A relação entre Woodcock e Alma é do tipo que hoje podemos, enfim, dizer abusiva. Ele está confortável, fincado em um lugar de poder e prestígio. Ela, nessas circunstâncias, é ninguém. Alma é sobretudo a mulher humilhada. Não pode passar manteiga no pão do jeito que lhe apraz, não pode ter suas preferências levadas em consideração quanto se trata dos vestidos que usará. Move-se demais, faz barulho demais, distrai Reynolds ao interromper seu silêncio com o ato de comer


Até que Alma entende que a humilhação é parte do erotismo desse homem amado e passa a querer o jogo. Paulatinamente, entende que, para preservar o desejo dele por ela, tem que ocupar o lugar de fazer-lhe mal em resposta às constantes humilhações; o lugar de deixá-lo doente e de eventualmente matá-lo. Ela desvela seu gozo e, de forma surpreendente, ele não recua, como recuaria um neurótico.

Alma poderia, é claro, sair da relação. Escolhe (?) ficar.


Woodcock, a despeito de suas insígnias, vive um desespero. Sabe mui lucidamente de tudo e expressa seu saber ao dizer que se sente amaldiçoado. A maldição: apaixonar-se por mulheres e não conseguir bancar cada paixão, tampouco conduzi-las ao amor. Ele se desinteressa pelas mulheres por quem se apaixona e seu desinteresse é marcado, de maneira renitente, pela suspensão do apetite. O estado de desamparo em que fica para tentar preservar a paixão por uma mulher, para dizê-lo outra vez, é o lugar, em sua fantasia fantasma, do filho ávido por um colo nutriz assassino. 


O ponto de virada do percurso de Alma é o momento em que encontra duas palavras escondidas em um outro vestido de noiva, que (não) é (mais) a mãe. Um vestido obra de Woodcock. As duas palavras são aquelas já mencionadas: never cursed. Como se Reynolds estivesse inserindo na vestimenta da noiva o que poderia desejar-lhe de melhor, embora saiba, intimamente, ser este um desejo fadado ao fracasso: de que ela não precise carregar uma maldição. Penetra palavras na gala da nubente. 


Alma diz do seu tempo: é após uma certa trajetória que pode afirmar “finalmente o entendi”. Um trabalho que ela fez. Encontrar as duas palavras no vestido fez parte do trabalho que ela fez. Para ela, isso significa encontrar um modo de sustentar o desejo dele. E sustentar o desejo dele era o desejo dela.

É muito sagaz que a história seja construída em torno de um estilista. E embora isso seja óbvio, quero crer que uma ou duas obviedades não bastam para arruinar um texto. Woodcock veste o corpo feminino não só com os vestidos de extrema beleza e requinte, que são criações suas, mas o veste também com sua rica e deprimente fantasia.


O filme, vale dizer, é muito bem costurado com metáforas, simbologias. Phantom thread, esse fio que é invisível, esse fio que é um fantasma, esse fio que é o fio da fantasia. 


Já os fios dos líquidos que Alma serve a Reynolds — distanciando até não mais poder, de um modo ao mesmo tempo irritante e atraente, a jarra da xícara, por exemplo – ligam a costura à comida. Isso é bem destacado nas imagens desde o primeiro encontro entre os dois amantes. Anuncia-se que a costura de Alma será outra. Ela antecipa a escrita do bilhete, com cuja entrega aceita o convite de Reynolds para jantar: “For the hungry boy, my name is Alma“. É significativo que boy venham no lugar de man.

Faz-se fio da linha, mas também do alimento e, portanto, do que que nutre/mata. A linha da vida e da morte materializa em imagens-movimento o arquétipo das Parcas. 


Em cena posterior, outra das muitas que sucedem à mesa, Alma já está elegantemente vestida por Woodcock, que a galanteia: “Você está linda. Está me deixando faminto”. Fome onde se esperaria tesão. A fome voraz que acompanha seu reengajamento no amor.


O jogo torna-se mais complexo até o final do filme, alcançando um extremo que só poderia ser sustentado se a complexidade fosse ainda maior, o que seria, é claro, impossível. O desejo que corre nas fantasias é de molde a ser satisfeito? Ou a fantasia é encenação utópica de satisfação para que o desejo possa ser reposto, insatisfeito? Não é a morte o único além do gozo?


Um outro momento de virada tem lugar quando Reynolds briga com a irmã, Cyril (Lesley Manville), essa terceira. Uma das funções de Cyril é encerrar os relacionamentos amorosos do irmão, o que faz oferecendo, à moça preterida, um vestido — é claro — em troca da ruptura. Ele, portanto, desincumbe-se de tal função. Que coisa fastidiosa seria investir seu precioso tempo e energia em mandar embora de sua casa uma mulher por quem não se interessa mais… 


Voltando à briga entre os dois irmãos, Reynolds pergunta, de forma histriônica, a Ciryl, onde foi parar Henrietta (Gina McKee), mulher que sabia vestir seus vestidos. Henrietta, que fique entendido, não importava, podia ser qualquer uma. Quando Alma entra nesta cena, fica claro que Reynolds esbravejava exatamente para seus ouvidos, para que ela pudesse responder à denúncia de que não pertencia àquele lugar com o gesto destrutivo; o gesto de um novo envenenamento que confirma seu direito de habitar a casa de Woodcock.


Alma serve então a Woodcock uma omelete recheada de cogumelos, alguns apenas saborosos, outros saborosos e letais. Ele examina a iguaria, conhece muito bem o risco pelo qual anseia. Alma o quer indefeso, dependente. O que ela diz aqui é: somente eu posso cuidar de você e, para que eu possa cuidar de você, você deve adoecer. Até que tenha sua força restabelecida. Ou morrer. O desejo é uma roleta russa. Com isso, ela faz entrar sua exigência, que é, então, uma exigência de exclusividade.


Alma responsabiliza-se por seu próprio gozo? (Ou por seu desejo? Ponto indecidível para mim.) Mas, se o gozo dessa mulher é atravessado, de forma acachapante, pela condição social do patriarcado, qual a medida do espaço que ainda resta para que essa responsabilização possa ser assumida, vislumbrada ou sequer cogitada? O gozo não é sem atravessamento do laço social.


Reynolds vomita e sorri. E depois sente fome, sinal de que sai da convalescença. Com a erogeneização do trato digestivo, ele repõe em marcha o circuito de desejo e angústia.


Mas, quando um perverso — ou quase (e digo “quase” porque dificilmente um perverso se identificaria com o lugar do amaldiçoado) — encontra sua fantasia reconhecida, como poderá preservá-la? O inferno do perverso é o reconhecimento. Pois não é condição de fruição da cena a recusa de sua vítima? Woodcock quer desprezar Alma para que ela possa responder ao desprezo com o gesto destrutivo. À medida que ele souber que ela aceita o desprezo, por entender ser parte de um jogo que resulta no enodamento do desejo dos dois, como isso ainda poderia funcionar? Como poderia continuar a ter efeito de envolvimento erótico dos parceiros? A explicitação da fantasia vai tão longe que acaba por se tornar possível perguntar se essa explicitação limítrofe, exaustiva mesmo, não é já a própria dissolução das condições de possibilidade de sua operatividade. 


De fato, o filme não poderia continuar, e isso em um sentido forte, porque lógico. O sentido de um arremate ou de uma bainha e, ao mesmo tempo, de suspensão. Por isso, o roteiro encerra-se com um corte exato, depois do qual a continuidade de ditos escassos na dança do “eu sei que você sabe que eu sei que você sabe” passaria a se tornar inviável.

Um filme, uma escrita, um ponto.


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