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Maria Letícia Reis

Beauvoir e a liberdade como causa do desejo




Maria Letícia Reis


Texto por ocasião do debate de "Lacan e a estrutura da cadeia significante", de Luciana K. Salum no dia 30 de agosto de 2024.



Luciana prepara o leitor para chegar na Carta Roubada e no repartitório. Isso tem uma coerência com a proposta do livro, porque não é uma mera aplicação de uma ideia ou conceito, uma via de mão única. Para chegar na carta roubada a autora vai mostrando os caminhos que Lacan percorreu com Benveniste, Saussure, Lévi Strauss e vai colocando uma coisa às claras; seu texto, então, tem uma ação. Essa engenhosidade linguística se expressa nos subtítulos do livro. Se dentro de uma experiência de análise um texto é construído na medida em que é lido, pois na psicanálise supomos uma escrita na fala, seu livro constrói com o leitor à medida que este o lê. Ou seja, preocupada com uma questão analítica, Luciana acerta também na literária. Freud não é tomado por Lacan como fonte de saber garantida e sim um texto que requer interpretação. Mas não qualquer interpretação.


Quando a autora traz, então, o significante, o articula com o sonho, mostrando ali que o que importa é o texto do Sonho. Michele Faria, idealizadora e curadora da editora Toro, traz isso na apresentação do livro: Lacan destacando “as leis que regem essa outra cena”. Numa grande nota de rodapé do capítulo 2 da Interpretação dos Sonhos (p.120, edição da LPM, 2012), Freud traz uma afirmação de Ferenczi: “cada

língua tem sua própria linguagem onírica”, demonstrando um trabalho com as palavras com respeito à materialidade.


Luciana faz do leitor, leitor, assim como Lacan fez com Freud, como a autora afirma na página 21: “alguém só escreve porque o outro lê”.


Disso quero retomar o título do livro anterior de Luciana Salum: “Fragmentos: O que se escreve de uma psicanálise” (Iluminuras, 2016) é como se a posteriori a autora escrevesse com os leitores do seu segundo livro, como escreveu o primeiro. O que é a matemática, senão o que se escreve?


Essa marca de transmissão, onde um texto é tecido durante a análise à medida em que é lido, é tomar Lacan, como insiste Shoshana Felman, entre muitas coisas, o ensino de uma leitura. Uma reforma do entendimento.


Então, reformamos, por exemplo, nossa acepção de memória. O texto de Luciana dá luz, por exemplo, à clássica frase de Lacan no Aturdito, que é uma topologia do dizer e do dito. “Que se diga fica esquecido por trás do que se diz no que se entende/escuta”.


Se Benjamin nos diz “Um acontecimento vivido é finito, ou pelo menos, encerrado na esfera do vivido, ao passo que o lembrado é sem limites, porque é apenas uma chave do que veio antes e depois”, seu texto deixa às claras que esse sem limites não é tão sem limites assim: na página 50 a autora afirma: “Há, em resumo, leis no jogo simbólico que irão ditar as possibilidades definidas pela estrutura, assim como demarcar as impossibilidades, também determinadas estruturalmente pela sua posição, pelo lugar do que não cessa de não se escrever, a depender é claro, do que está escrito.”


Podemos dizer que a gente chega numa análise querendo saber o que está escrito enquanto se escreve, insisto nesse ponto. Logo antes de iniciar o repartitório no seu livro, a autora afirma: “lançar à estrutura mínima de sentido no texto produzido por uma análise”. P. 53. Um verbo me ocorre: enxugar. Seu texto respira, é sem pressa, não é ofegante, é enxuto. O que diz respeito à coerência que trouxe no início.


Para além da frase do esquecido atrás do dito, quero dizer apenas mais duas coisas acerca de como minha pesquisa se entrelaça com a de Luciana Salum. A memória da qual ela compartilha com seu leitor é também memória do futuro, do por vir. Na página 58 encontramos: “o presente é reconfigurado enquanto possibilidade do passado, dentro da história, em razão do futuro. ” Às voltas com a posição específica da linguagem da mulher e de uma escrita feminina, tenho pensado no destino de todo texto de memória. “Feminina desmemória”, como sugere Lucia Castello Branco em Escrita Feminina. “A memória é dada pela linguagem”. O modo como cada pessoa se posiciona na linguagem define sua forma de lembrar.


Certamente a filósofa e memorialista Simone de Beauvoir não tem a mesma acepção de memória que temos com Lacan. No entanto, há algo que nos concerne no que diz respeito ao que Julia Kristeva nomeou como uma revolução antropológica de Beauvoir: Ela mudou o destino da mulher. Coloca a liberdade como objeto causa de desejo.


Me lembro, portanto, de uma outra frase de Lacan, também acerca do destino: “o que o sujeito vem procurar numa análise senão o tropo dos tropos aquilo que se chama seu destino”? Que é uma versão da pergunta: o que fazemos quando fazemos análise? (pergunta do Lacan que aparece no

livro de Luciana). A essa pergunta, ele responde: lemos. E eu acrescento: o que fazemos quando fazemos análise? Descobrimos porque falamos o que falamos.


O funcionamento das leis simbólicas define a estrutura da linguagem. Como pensar a acepção de destino da mulher no funcionamento das leis simbólicas?


Como jogar com o “fortuito”, o “acaso”, o “aleatório”, quando cara a mulher perde e coroa o patriarcado ganha? (como no caso Dora, por exemplo?), principalmente se se tratam de posições, que os significantes tem uma genealogia, e que até chegarmos num texto numa análise precisamos sim de fôlego? A mulher precisa apostar mais no significante? Outro dia num grupo de estudos, pensando nas posições, uma colega disse que a rainha da carta roubada está embaraçada. Eu ri.


Num dos momentos que Luciana traz Levi Strauss em “O feiticeiro e sua magia”, ela afirma: “Não há força capaz de tirar as pessoas da situação que define seu sistema simbólico.” p. 35. Pergunto: a ausência define o sistema simbólico da mulher? Pensando com Barthes, quando (até onde sei), o único lugar que faz referência à mulher é justamente no fragmento: O ausente? (Fragmento de um discurso amoroso).

Um texto pode ser reescrito, Cixous o fez com o caso Dora. Nós o fazemos. Com Freud e Lacan.


Penso o impossível no campo dos possíveis como não realizado. Numa oficina de ler com o escrito na Outrarte- (IEL- Unicamp), discutimos as versões do impossível, a escrita do impossível, impossibilidade de escrever a relação sexual. Impossível escrever a não relação sexual é diferente de escrever a impossibilidade. Impossível é uma categoria lógica,

e o livro de Luciana Salum ajuda a pensar como a categoria lógica se apresenta na clínica. O relacionamos com o que não cessa de não se escrever.


E numa análise, dá para pensar o impossível no campo dos possíveis como não realizado?

Se o sujeito é efeito de discurso, pergunto: é possível reescrever a impossibilidade? Ou seja, mudar o impossível de lugar? Tem efeito de cura mudar de impossível? Como o impossível habita o campo dos possíveis? Afinal, o que é o possível em psicanálise?

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