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Graziela Marcheti

A ruptura de Lissette

Graziela Marcheti


O documentário chileno O Pacto de Adriana, de 2017, pode ser um importante filme sobre a memória das atrocidades ocorridas no período da ditadura daquele país. E certamente é. Mas esse texto não é sobre isso.


Algo acontece durante a sua realização, desde as entrevistas, pesquisas e montagem, que transforma o que seria um filme-defesa da inocência de Adriana Rivas, diante das acusações de tortura durante a ditadura, num documentário em primeira pessoa que revela os conflitos da diretora entre a herança familiar e o compromisso ético com a história de seu país. Nele, Lissette Orozco nos permite acompanhar ao seu lado um processo de transformação do qual nunca mais ela retornará.


Aos 30 anos, Lissette ainda estudante de Cinema, se propõe a fazer um documentário contando a história de sua tia Chany, uma das mulheres mais importantes na sua vida, na sua formação, nas expectativas e constituições sobre ser adulta, feminina, mulher, enfim, sua “heroína”, em suas palavras.


Formada numa família predominantemente de mulheres, marcada pela ausência da mãe, mas com muitas presenças femininas cumpridoras desta função (tias, avó e bisavó), Lissette via em sua tia Chany uma mulher independente, ousada, capaz de acessar o mundo público e a sexualidade de uma forma muito mais livre do que é moralmente permitido às mulheres em geral. Chany não era apenas um afeto próximo de Lissette, mas alguém que a inspirava e lhe provocava o desejo (e crença) de ser uma mulher livre.


Ainda na sua infância, viu sua tia mudar-se para Austrália e fazer algumas viagens para visitar a família, até que, num desses retornos ao Chile, acabou sendo levada pela polícia do aeroporto para prestar depoimentos sobre o processo que, naquele momento, tornou-se explícito a toda família: Adriana respondia por acusações de sequestro e tortura na ditadura Pinochet.


A ideia inicial de Lissette, em acordo com sua tia, era a de realizar um filme que demonstrasse sua inocência, já que a mesma nega todo e qualquer fato a respeito de ter tido contatos com prisioneiros ou tortura. A forma com que Adriana nega sua participação ativa nesses crimes é extremamente desconcertante. Repete o mesmo discurso de uma maneira blindada, a ponto de deixar alguém sem outros recursos à mão incapaz de contestá-la.


Entre 1976 e 1977, Adriana Rivas trabalhou na DINA (Diretoria de Inteligência Nacional), sendo a agente mais próxima do general braço-direito de Pinochet, Manuel Contreras. Em todas as entrevistas, Adriana alega não ter tido nenhum conhecimento acerca de torturas ou assassinatos durante esse período. Mas, o que pesquisadores e testemunhas relatam é que, dentre as agentes femininas, Adriana era uma das mais cruéis. O que se sabe é que ninguém que trabalhava na DINA ficava de fora das ações de tortura. Esse tipo de configuração cria declaradamente um pacto de silêncio, no qual todos estão envolvidos e comprometidos.  Num certo momento do filme, surge essa constatação: Adriana não está exatamente mentindo. Pois o que ali aconteceu é algo da ordem do inconfessável, e precisou, de certa forma, ser recusado diante do insuportável. Isso não se trata de uma decisão pessoal, simplesmente. E sim de algo construído coletivamente nos departamentos de inteligência. O pacto.


Porém, durante o filme, outro pacto vai se explicitando. Como seria possível a Lissette, à sobrinha que deve tanta gratidão à sua tia, colocar-se numa posição de suposta traição familiar?


Judith Butler nos convida a pensar sobre as opacidades da nossa constituição subjetiva. De acordo com a filósofa, o fato de sermos constituídos por relações que nos antecedem, antes mesmos de nos entendermos como indivíduos, nos coloca em condição de precariedade e vulnerabilidade. Essa constatação, de que nossa existência é marcada pela dependência de pessoas íntimas, mas também de desconhecidos, desde em situações práticas da vida, até à formação de nosso psiquismo, coloca o ser humano em um terreno instável e estranho a si mesmo. Vivemos como se isso não fosse possível, e muitas das organizações que lutam por direitos de grupos específicos acabam perdendo de vista que toda identidade se constrói a partir da uma diferença. Isso não acontece apenas no início da vida. Ao longo de nossa existência, identidades são reforçadas e desenvolvidas à medida em que relações afetivas (de perda, raiva ou paixão) são capazes de nos "despossuir", ou seja, trazerem à tona um desconhecido de nós mesmos. Isso, certamente, nos vulnerabiliza. Mas também, segundo Butler, é essa experiência capaz de nos deslocar ao campo da política de forma não dominadora.


O que Lissette vive de maneira documentada em seu filme é uma experiência de ruptura e luto diante de um acordo familiar silencioso. As outras mulheres de sua família mantêm a dúvida sobre a possibilidade de uma pessoa tão querida por todas ter cometido graves crimes em seu país. Em nenhum momento, isso é negado da mesma maneira que é feito por Adriana. No entanto, há um sentimento de que a justiça será feita, como se isso não afetasse a relação entre elas. Adriana possui pendências com a justiça, mas a relação familiar se mantém intacta.


Com Lissette, algo ultrapassa essa condição. O reconhecimento do laço afetivo, da conexão constitutiva que possui com sua tia Chany não apenas não é negado, como também é confrontado com a constatação de sua participação nos atos de tortura da DINA. A dívida simbólica que Lissette possui perante Adriana é, por obra da ironia, justamente um dos fatores de vulnerabilidade que lhe permite ser empática e responsável diante de atos criminosos que demandam um reconhecimento público. De certa maneira, como ato de gratidão ao que a excede, Lissette expõe em seu filme a verdade da memória histórica. Em outras palavras, o que poderia ser compreendido como uma traição ou entrega de sua tia querida ao julgamento público revela-se como um ato de gratidão e nascimento de um novo sujeito ético. Nasce então a responsabilidade pública de contar a verdade.


O historiador Michael Rothberg deu a isso o nome de "sujeito implicado". A ideia de implicação aqui chama a atenção sobre como estamos todos entretidos e implicados em histórias que superam nossa agência como sujeitos individuais. Nesse sentido, o autor nos provoca à pergunta: como é possível sermos responsáveis por ações que não vivemos e que podem ter sido realizadas anteriormente ao nosso nascimento? Lissette, nascida em 1987, sequer testemunhou o período em que sua tia trabalhou para a DINA. Mas a herança histórica lhe abriu uma possibilidade de agência através da honestidade apresentada no filme. O espectador acaba por testemunhar seus conflitos e angústias por todo o processo.

A família de Lissette dividiu-se diante do que foi apresentado no filme. Uma parte rompeu com ela e entrou com um processo na justiça. Outra, a apoia. O pacto foi quebrado. Não sem um preço a ser pago. Adriana e Lissette romperam. E ainda hoje, Adriana apela na justiça australiana contra o pedido de extradição feito pelo governo chileno.


É curioso pensar como os campos privado e público se confrontam e se conectam a partir desse caso. A começar pela admiração de Lissette pela tia: uma mulher que foi para a vida pública, jantava com oficiais, viajava, falava inglês, ou seja, não ficou restrita ao ambiente doméstico. Isso também parece ter seduzido a própria Chany, uma mulher mediana, com chances de frequentar festas, jantares junto a autoridades, participar, de certa forma, da vida pública. No entanto, sua inserção nesse território de poder em nada contribuiu para uma construção democrática e cidadã. Para que isso fosse combatido, dois pactos teriam que ser rompidos: aquele feito na DINA, entre cúmplices de crimes políticos, e o pacto silencioso familiar. Numa certa altura dos debates feministas, a frase-slogan “o pessoal é político” levantou questões que nos fazem olhar para as relações de poder impostas em todas as camadas das relações humanas. De certa forma, foi de dentro desse espaço privado que Lissette encontrou as contradições possíveis para fazer de seu filme um testemunho ético sobre a verdade histórica. Romper com esse pacto pôde ser justamente a forma de lutar contra uma injustiça desde aquilo que é pessoal. Sua história pessoal, seus afetos, tudo ali estava implicado em sua opção estética. E tal obra fílmica acaba por ser, justamente, um diálogo com o público, nos campos da memória e da reparação histórica. Foi a partir do pessoal que Lissette pôde construir uma ação efetivamente política e estética capaz de transformar esse legado em responsabilidade cidadã.

 

Referências bibliográficas

Butler, J. “Violência, Luto, Política.” In: BUTLER, Vida Precária: Os Poderes do Luto e da Violência, 2019, Autêntica Editora, Belo Horizonte,

Lazzara, M. J. “Familiares de Colaboradores y Perpetradores en el Cine Documental Chileno     : Memoria y Sujeto Implicado.” Atenea, 521, 2020.

 

 

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